Um estrangeiro arrenda uma casa no centro
da cidade da Covilhã a cento e oitenta metros da minha. É só descer a rua de
Olivença, virar à direita, passar por cinco casas abandonadas e se for hora de
expediente, a residência desse meu conhecido – que pouco a pouco passa a amigo
e já vão saber porquê – fica a seguir ao estabelecimento de um sapateiro de
sessenta anos. Uma desproporcionada habitação, com três andares de vinte
janelas, dezanove portas, quinze salas habitadas pela humidade e um recatado
jardim interior com sete árvores, duas de fruto.
Um sapateiro, com a bata de couro matizada
pela cola de contacto seca, trabalha numa outra casa desabitada com capacidade
para abrigar dez famílias. Sim! Dez famílias senhores desalojados pelo engodo
da banca dos anos noventa.
Os senhorios pagariam para o doutor
Bate-Sola ir para casa, o que obrigaria toda a vizinhança a ficar sem sapateiro
e daqui a pouco – mês e meio – quando for inaugurada mais uma superfície
comercial, eu, por falta de doutor Remendão, coloco as minhas botas no lixo,
compro outras nesse mercado capitalista e envio o dinheiro para Lisboa, com o
sapateiro de sessenta anos prematuramente reformado. Ainda o encontro de
carrinho de compras, eu a comprar botas e ele vinho fraco que a indemnização
obtida e a reforma não dá para mais. Censurá-lo, eu, ao saber que o tédio do
tempo longo e sem frutos o mataria sem qualquer narcótico? Não! Prefiro
pontapear as garrafas de lixívia vazias que depois rolam nas ruas calcetadinhas
e desenhadas pelas moradias estragadinhas e a caírem aos bocados rotos.
A oficina do sapateiro está encerrada, mas
penso que reabre. O degrado do prédio em conspiração com este tempo seco, que de
repente virou chuva fria e grossa, adoeceu o sapateiro. Mas ele volta! E assim
que voltar, levo-lhe os meus sapatos carrinho-de-choque para consertar. Ele
precisa tanto de dinheiro para compensar a parca baixa de saúde.
Os senhorios remuneram-no para ele ir
embora. Indemnizam-no para que todo o edifício, construído no Estado Novo -
fique com um só locatário estéril e solteirão: o Burgalhau-Madeira-Podre.
Passamos pela porta dessa profissão antiga
(sapateiro pensador, encolhido em cinco metros quadrados): “Desculpe, sabe-me
dizer onde é a cantina da Boavista?”, “A Câmara Municipal da Covilhã fica para
que lado?” ou para combinar com os montes “Qual foi a última vez que nevou?”,
“Há nove dias atrás!” - respondia se o visitassem hoje.
Comprei meio quilo de carne vegetal numa
ervanária da Covilhã para a despedida desta mansão histórica. Seguindo em
frente, do lado esquerdo, encontramos o muro de trinta metros com um portão
pequeno para a entrada. Com um jardim a receber quem lá entra, segue-se a parte
alugada.
As salas do lado norte das casas
portuguesas são frias, uma vez que é o sul que o sol premeia. O sul da casa da
Dona-que-não-precisa-de-dinheiro está fechado, as divisões mais aconchegantes,
mais amplas e ensolaradas estão encerradas.
Para além do meio quilo de seitã por três
euros, que equivalem a dois quilos de carne de animal mal degolado, comprei
também duas cebolas e três alhos por oitenta cêntimos. As duas colheres de sopa
de caril levei de casa e o sal já lá estava.
Coloca-se a cebola em azeite e alho numa
panela de inox – o alumínio é tóxico – e depois de refogar durante quatro
minutos, juntam-se as duas colheres de caril. O cheiro invade a casa e fica
ainda com mais vida.
Há dois dias, o Espanhol, Castelhano ou
Basco – disse-me mais tarde que se considerava Aragonense não separatista –
preparou uns bolinhos com chá e manteiga para receber a
Dona-que-não-precisa-de-dinheiro. Talvez por não ter oferecido a carne vegetal
que hoje preparo – cortada às fatias finas e estrugidas com azeite português, cebola,
alho, e sal a gosto – ele também não permeou a proprietária com o aroma guloso
do seitã a cozer com o caril durante vinte minutos até ficar um molho
consistente. Às vezes junto um pouco de água, na comida e nas pessoas, para
estrugir em vez de fritar.
Cinquenta minutos de preparo, a contar com
o tempo do descasque da cebola e do alho, o mesmo espaço de tempo que o
Aragonense se desfez em argumentos para explicar à
Dona-que-não-precisa-de-dinheiro que a casa necessita de ar, de gente e
circulação. Os vizinhos estão contentes, o espaço arejado e a senhoria a
ganhar, mas… – há sempre um mas nestas histórias perfeitas – a senhoria não
precisa de dinheiro e prefere manter a casa desabitada. Uma desproporcionada
habitação com três andares, vinte janelas, dezanove portas, quinze salas
habitadas pela humidade e também um recatado jardim interior de cem metros
quadrados com sete árvores, duas de fruto.
Anteontem, dia vinte e um de fevereiro de
dois mil e cinco, a Dona-que-não-precisa-de-dinheiro não entendeu os argumentos
e sem conseguir explicar o porquê prefere a casa vazia. Os preços continuam
altos para quem aposta na educação na Beira Interior senhor Reitor. A Covilhã
está a cair! Há casas irrecuperáveis, mas há outras que com toques de
marceneiro e pinturas de pedreiro são reabilitadas para a vida do novo século.
Existem outras, mesmo por detrás da Câmara Municipal, visitadas por turistas
atraídos pela neve que precede a verdadeira primavera serrana, com placas
camarárias onde se lê – excepto as crianças até aos sete anos – que o governo
descarta qualquer responsabilidade caso aqueles frontispícios, de senhores
ricos na capital a prosperar, caia nos residentes transeuntes ou nos estudantes
que distraídos com o esforço do ensino universitário português deviam relaxar a
processar (em Bruxelas se escreverem em francês) quem colabora com os prédios a
morrerem estéreis e sem reparo.
A receita para quem necessita de alugar uma
casa a senhorios que não precisam de dinheiro é a seguinte: meio quilo de
seitã, à venda em qualquer loja de produtos naturais. Duas cebolas médias, um
tomate fresco, dois alhos, shoyu e caril. Com o seitã em fatias finas
tempera-se, de preferência no dia anterior, com alho, sal e molho de soja. A
cebola às rodelas é colocada num tacho com o azeite até alourar, de seguida
introduz-se as fatias do seitã, o tomate, o caril, o molho de soja, sal e dois
copos de água.
Permanece em lume brando durante vinte
minutos antes de servir.
Um ser humano complicado desprende-se
diariamente sem que eu consinta. Se quero permanecer cego às partes quentes do
globo, porque me lanço de cabeça nos contágicos sentimentos?
Demoníaco tardo a perceber o fumo das
garras dos catraios a brincar escanzelados com as cruzes das bombas. Vales de
mares tardam e aterro. Ando sem encaixe e com feições terrenas, demasiado.
Um desabado mundo volta a atacar sôfrego de
atenção. Chorincas letras que não acordam, não se afastam da negrura gélida do
terror, da dor, do amor coçado de fuga.
Arranho a pele para a encontrar. Espeto
lascas. Dói? Pois sim cetim! Froixo contínuo levantado, cruzado de ignorância
tocada e sem órbita. Espelhos de mim bem-querido festim!
Amargos cardos à vontade rolam! Eu, atento,
continuo completo, o meu ser sou eu, o meu eu repleto. Distrai de prosa cai no
metro. Não acertes. Ponto final de cinco em sete palavras e desmarcas a medida.
Isso, escreve suave e sem escala! Digo
escrúpulos, folo em júbilos, descrevo formas em cambalhota sem gravidade que me
aperte. Versalhada não me soletres, convém saberes que inteiro sou mais homem
que tapado, marcado em tom ritmo, sem que os poros que me lanço sejam despertos
do vulgar.
Fico igual, circular ou marginal?
2005, fevereiro, dia 23, Quarta-feira,
22:46:33 h
Índice
01. Saudosismo
04. Páscoa Ciente
08. Pedido Merecido
11. Ramos
12. Liberdade
14. Umbigo da Terra
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18. Meia-Tinta
21. Dia Tumultuoso
24. Transe Natalício
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33. Escada em L
35. Vigilância
36. Para Sempre
38. Ficheiro Poluído
41. Seitã com Caril
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