quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Seitã com Caril – Incompleto Organismo de Heleno Pinhal


Um estrangeiro arrenda uma casa no centro da cidade da Covilhã a cento e oitenta metros da minha. É só descer a rua de Olivença, virar à direita, passar por cinco casas abandonadas e se for hora de expediente, a residência desse meu conhecido – que pouco a pouco passa a amigo e já vão saber porquê – fica a seguir ao estabelecimento de um sapateiro de sessenta anos. Uma desproporcionada habitação, com três andares de vinte janelas, dezanove portas, quinze salas habitadas pela humidade e um recatado jardim interior com sete árvores, duas de fruto.
Um sapateiro, com a bata de couro matizada pela cola de contacto seca, trabalha numa outra casa desabitada com capacidade para abrigar dez famílias. Sim! Dez famílias senhores desalojados pelo engodo da banca dos anos noventa.
Os senhorios pagariam para o doutor Bate-Sola ir para casa, o que obrigaria toda a vizinhança a ficar sem sapateiro e daqui a pouco – mês e meio – quando for inaugurada mais uma superfície comercial, eu, por falta de doutor Remendão, coloco as minhas botas no lixo, compro outras nesse mercado capitalista e envio o dinheiro para Lisboa, com o sapateiro de sessenta anos prematuramente reformado. Ainda o encontro de carrinho de compras, eu a comprar botas e ele vinho fraco que a indemnização obtida e a reforma não dá para mais. Censurá-lo, eu, ao saber que o tédio do tempo longo e sem frutos o mataria sem qualquer narcótico? Não! Prefiro pontapear as garrafas de lixívia vazias que depois rolam nas ruas calcetadinhas e desenhadas pelas moradias estragadinhas e a caírem aos bocados rotos.
A oficina do sapateiro está encerrada, mas penso que reabre. O degrado do prédio em conspiração com este tempo seco, que de repente virou chuva fria e grossa, adoeceu o sapateiro. Mas ele volta! E assim que voltar, levo-lhe os meus sapatos carrinho-de-choque para consertar. Ele precisa tanto de dinheiro para compensar a parca baixa de saúde.
Os senhorios remuneram-no para ele ir embora. Indemnizam-no para que todo o edifício, construído no Estado Novo - fique com um só locatário estéril e solteirão: o Burgalhau-Madeira-Podre.
Passamos pela porta dessa profissão antiga (sapateiro pensador, encolhido em cinco metros quadrados): “Desculpe, sabe-me dizer onde é a cantina da Boavista?”, “A Câmara Municipal da Covilhã fica para que lado?” ou para combinar com os montes “Qual foi a última vez que nevou?”, “Há nove dias atrás!” - respondia se o visitassem hoje.
Comprei meio quilo de carne vegetal numa ervanária da Covilhã para a despedida desta mansão histórica. Seguindo em frente, do lado esquerdo, encontramos o muro de trinta metros com um portão pequeno para a entrada. Com um jardim a receber quem lá entra, segue-se a parte alugada.
As salas do lado norte das casas portuguesas são frias, uma vez que é o sul que o sol premeia. O sul da casa da Dona-que-não-precisa-de-dinheiro está fechado, as divisões mais aconchegantes, mais amplas e ensolaradas estão encerradas.
Para além do meio quilo de seitã por três euros, que equivalem a dois quilos de carne de animal mal degolado, comprei também duas cebolas e três alhos por oitenta cêntimos. As duas colheres de sopa de caril levei de casa e o sal já lá estava.
Coloca-se a cebola em azeite e alho numa panela de inox – o alumínio é tóxico – e depois de refogar durante quatro minutos, juntam-se as duas colheres de caril. O cheiro invade a casa e fica ainda com mais vida.
Há dois dias, o Espanhol, Castelhano ou Basco – disse-me mais tarde que se considerava Aragonense não separatista – preparou uns bolinhos com chá e manteiga para receber a Dona-que-não-precisa-de-dinheiro. Talvez por não ter oferecido a carne vegetal que hoje preparo – cortada às fatias finas e estrugidas com azeite português, cebola, alho, e sal a gosto – ele também não permeou a proprietária com o aroma guloso do seitã a cozer com o caril durante vinte minutos até ficar um molho consistente. Às vezes junto um pouco de água, na comida e nas pessoas, para estrugir em vez de fritar.
Cinquenta minutos de preparo, a contar com o tempo do descasque da cebola e do alho, o mesmo espaço de tempo que o Aragonense se desfez em argumentos para explicar à Dona-que-não-precisa-de-dinheiro que a casa necessita de ar, de gente e circulação. Os vizinhos estão contentes, o espaço arejado e a senhoria a ganhar, mas… – há sempre um mas nestas histórias perfeitas – a senhoria não precisa de dinheiro e prefere manter a casa desabitada. Uma desproporcionada habitação com três andares, vinte janelas, dezanove portas, quinze salas habitadas pela humidade e também um recatado jardim interior de cem metros quadrados com sete árvores, duas de fruto.
Anteontem, dia vinte e um de fevereiro de dois mil e cinco, a Dona-que-não-precisa-de-dinheiro não entendeu os argumentos e sem conseguir explicar o porquê prefere a casa vazia. Os preços continuam altos para quem aposta na educação na Beira Interior senhor Reitor. A Covilhã está a cair! Há casas irrecuperáveis, mas há outras que com toques de marceneiro e pinturas de pedreiro são reabilitadas para a vida do novo século. Existem outras, mesmo por detrás da Câmara Municipal, visitadas por turistas atraídos pela neve que precede a verdadeira primavera serrana, com placas camarárias onde se lê – excepto as crianças até aos sete anos – que o governo descarta qualquer responsabilidade caso aqueles frontispícios, de senhores ricos na capital a prosperar, caia nos residentes transeuntes ou nos estudantes que distraídos com o esforço do ensino universitário português deviam relaxar a processar (em Bruxelas se escreverem em francês) quem colabora com os prédios a morrerem estéreis e sem reparo.
A receita para quem necessita de alugar uma casa a senhorios que não precisam de dinheiro é a seguinte: meio quilo de seitã, à venda em qualquer loja de produtos naturais. Duas cebolas médias, um tomate fresco, dois alhos, shoyu e caril. Com o seitã em fatias finas tempera-se, de preferência no dia anterior, com alho, sal e molho de soja. A cebola às rodelas é colocada num tacho com o azeite até alourar, de seguida introduz-se as fatias do seitã, o tomate, o caril, o molho de soja, sal e dois copos de água.
Permanece em lume brando durante vinte minutos antes de servir.
Um ser humano complicado desprende-se diariamente sem que eu consinta. Se quero permanecer cego às partes quentes do globo, porque me lanço de cabeça nos contágicos sentimentos?
Demoníaco tardo a perceber o fumo das garras dos catraios a brincar escanzelados com as cruzes das bombas. Vales de mares tardam e aterro. Ando sem encaixe e com feições terrenas, demasiado.
Um desabado mundo volta a atacar sôfrego de atenção. Chorincas letras que não acordam, não se afastam da negrura gélida do terror, da dor, do amor coçado de fuga.
Arranho a pele para a encontrar. Espeto lascas. Dói? Pois sim cetim! Froixo contínuo levantado, cruzado de ignorância tocada e sem órbita. Espelhos de mim bem-querido festim!
Amargos cardos à vontade rolam! Eu, atento, continuo completo, o meu ser sou eu, o meu eu repleto. Distrai de prosa cai no metro. Não acertes. Ponto final de cinco em sete palavras e desmarcas a medida.
Isso, escreve suave e sem escala! Digo escrúpulos, folo em júbilos, descrevo formas em cambalhota sem gravidade que me aperte. Versalhada não me soletres, convém saberes que inteiro sou mais homem que tapado, marcado em tom ritmo, sem que os poros que me lanço sejam despertos do vulgar.
Fico igual, circular ou marginal?

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