sexta-feira, 3 de maio de 2019

Comenos XXI - Senti a tua falta - Comenos Helenísticos Heleno Pinhal 2003


Há uma guerra secular entre o sentir e o comportar. Nos negócios e no amor, os pensamentos passam rápido e o sentir fica desimpedido. Os sentimentos, esses são desconexos e deixam os mais versados perplexos.
O mundo cresce e os tempos mudam. Ao chegar a casa já não há o jornal ao lado de meias rotas remendadas. Acabaram os passeios escoltados pela meiguice ao pôr-do-sol, acabaram as fagulhas a saltar seduzidas pelo tapete, acabaram as maçanetas movidas por galanteria, preconizando suaves delicadezas antes de dormir.
Agora são outros tempos, agora, nada disto tem valor. Já não há passeios no campo e visitas à família. Agora, bebemos todos nas fontes de uns e de outros.
Com o ampliar das relações e o acanhar das emoções surge o veneno do ciúme, o inferno dos amatórios conservadores. Mas o casalinho lá vai insistindo nessa caduca forma de amar, esforçando-se por gostar à moda antiga. Sem rosas nem serenatas, fazem convénios com promessas e juras tentando mesclar castamente emoções de telefonia com as pipocas perfídias no cinema estéreo.
Nos dias mais frios acendo a lareira e estoiro pipocas. Consulto a prateleira de madeira que reveste o meu peito e recordo emoções passadas. Não o faço todos os dias, porque acompanho o rodar do mundo, mas há certas emoções que existiram e que me agradam recordar.
Os fósforos estavam húmidos, mas o meu coração apelava por um estranho sentir. Procurei um isqueiro, juntei devidamente os paus velhos que recolho na serra e acendi a lareira.
O fogo começou a arder e o seu calor a dizer:
Senti a tua falta e sem saber porquê lembro-me de ti. A palavra falta é sinónimo do teu nome. Foram os teus lábios que lançaram essa missiva para o meu laboratório intelectual e depois de misturar esse princípio com os excrementos dos meus vícios esfriei-os e esfaqueei-os a sangue frio.
Não sei se és mais um vício, sem resíduos tóxicos, ou um vinho que alimenta a alma e não prejudica o meu corpo. Não estou certo que assim seja. Sempre procurei essa embriaguez, mas rapidamente o meu corpo reage e desliga o seu efeito.
Dizes que a falta é benéfica e fico desordenado. Sinto-me um estoico a lutar contra os meus desejos e não percebo o porquê de tanto alarido sentimental. Qualquer tentativa de cravar neste papel o meu anseio por ti é como içar os pés acima da cabeça. Custa, dói e arrepia o meu subtil receio de exploração dos outros.
Transformo-me num misantropo e culpabilizo-te sem nitidez. Culpabilizo o teu sorriso, culpabilizo os teus lábios e culpabilizo também esse teu jeito de me observar que criminosamente encobrem o teu interior.
Agradas-me sem eu querer e constróis uma âncora árdua que me crava a ti. Procuro incessantemente uma maré forte, de preferência sem tempestade, para partir esses elos, mas é só para depois os soldar, ser eu a ancorar-me a ti e não uma força invisível e efémera que não compreendo.
E o fogo apagou-se, suavemente e sem subterfúgios, por falta de passeios na encosta da minha querida serra.

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