Sou um prego, já vivi muito tempo e agora estou num esconderijo muito bem guardado.
Durante trinta anos
trabalhei com muito empenho. Segurei uma tábua magricela a um barrote obstinado
na torre da igreja da aldeia. Um santo local de trabalho como sempre julguei.
Saí da mãe fábrica e após
dois dias de transporte começou toda a formação. Um carpinteiro de meia-idade empregou-me
em mil novecentos e vinte e dois, numa sexta-feira antes do almoço. Onze horas
e trinta e sete minutos. O artífice, comigo bem preso entre o polegar e o
indicador da mão esquerda, com o martelo
na direita disse:
- O teu dever é segurar
esta tábua de um metro e dez a este barrote de oitenta.
Parecia que o tempo tinha
parado. Há dois meses que procurava emprego e agora tinha encontrado. Um
emprego bem seguro como toda a gente deseja.
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Prego enferrujado - farolas helenopinhal.blogspot.com |
Antes da “pancadaria” necessária, pedi para ser colocado um pouco mais
acima, mais próximo do nó de madeira que observava o meu primeiro dia de
trabalho. Pedi com pleno direito, já que ia passar tantos anos neste emprego,
precisava de boa companhia.
Com seis bordoadas do
martelo fiquei entalado até ao pescoço. Conservei-me assim bem agasalhado embora
um nadinha apertado. Éramos todos muito unidos, o barrote obstinado, a tábua
magricela, o nó de madeira e eu, o prego bem entalado como nessa altura me
chamavam.
A história do meu actual
nome, prego enferrujado, começou quando a tábua magricela recebeu os primeiros
pingos de chuva. Uma telha tinha escorregado pelo telhado da torre, que é muito
inclinado, e como nenhum humano reparou na doença da minha amiga - inchada por
estar tanto tempo molhada - perdeu a consistência, depois a lucidez e foi-se
após uma despedida prolongada.
O barrote que era mais
corpulento que a tábua magricela durou mais tempo. Depois de tantos anos a
trabalhar em conjunto fiquei tão agarrado a ele que só o larguei na lareira do
sacristão, que agora tocava as trindades numa torre mais moderna.
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Prego enferrujado - farolas helenopinhal.blogspot.com |
Esse rapaz, com olho para
a vida, viu-me largado no borralho da lareira, quando me recolhia com as cinzas
do barrote obstinado.
Foi nesta condição, torto
pelos anos, que reconheceram o meu valor.
- Tu és o prego da escada
da torre da igreja que veio abaixo?
Como só sei a linguagem
dos pregos, das tábuas, dos barrotes e dos nós não respondi, mas ele reconheceu
todo o meu valor.
- És o prego da torre da igreja,
deves de ter para aí uns noventa anos, como vou viver outros tantos ainda te
apanho com quase dois séculos.
Depois, imaginou-me
emoldurado numa exposição bem ampla de coisas fortes do século passado,
colocou-me no bolso, mesmo enferrujado, e guardou-me no melhor esconderijo da
sua casa.
E sabem onde estou a aguardar
a sua velhice para não ser incomodado? Estou no seu esconderijo secreto,
arrumadinho e muito bem reformado.
Assinado: Prego Enferrujado
14 Dezembro 2003
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