Foste sincera e isso sabe a mel vindo de uma mulher bonita.
É bom saber que me sentes desse lado, que invades conscientemente a minha
privacidade e ver, que eu, como um menino bobo, fecho-me na armadura da
autoconfiança, mas raladinho para me dar por completo, mostrando-te todos os
tesouros que guardei à medida que o sal foi caindo nesta panela que ferve
sempre cá dentro.
Há coisas que devem ser mantidas em segredo, mesmo para nós
próprios, de forma a manter a serenidade que nos torna capazes de parar, ao ver
as folhas que caem num outono tardio, ou continuar, quando nos aborrecem com
conversas fastidiosas ou olhares fingidos.
Saber sentir é complicado, mas gostar de alguém também o é.
Ontem, saí molhado pela falta de me encontrar. Falei a amigos
estranhos, que pouco ou nada sabem de mim. Vêem-me alegre, a galrear ideias
aparentemente desconexas e são atraídos pela pérola da franqueza que trago
frequentemente ao pescoço. Conhecidos que de certo hoje já nada se lembram. No
entanto, disse-lhes o que sentia, como se fossem o muro das lamentações. Como
tenho pena desse muro não existir cá! Não para lamentos, mas para contar todos
os segredos, que por medo das sombras negras dos outros guardamos cá dentro,
apodrecendo e contaminando todo o nosso corpo e espírito, com o fel da frustração
de não sermos sempre nós próprios.
Algo aparece.
Sobre o rio do teu corpo.
Sobre o rio do teu corpo.
Sobre o rio do teu corpo.
Vem. Vamos. Anda daí! Vem gravar em rocha de granito todo o
auge emocional que é possível conter e perceber esta cascata de emoções que
todos temos cá dentro.
Passamos uma hora frente a frente num café sem falar. Depois, vais embora sem proferir uma palavra. Compramos canetas e cadernos novos, para
afastar qualquer vestígio do nosso passado, e vamos sentar-nos contemplativamente,
com um olho esquerdo para nós e o destro para o outro, com todo o direito de
examinar como se um de nós fosse extraterrestre. Vamos colar esse momento no
papel e no fim, queimamos tudo ou então oferecemos ao outro, para que nenhum de
nós pense, ainda que num momento, que é possível morrer, visitar o paraíso e
voltar para este vale de lágrimas para uns e festim para poucos.
Nunca fiz nada igual! Sei que vou perder dias de vida, com
esta desordem emocional, mas o que importa quando se percebe que o tempo só se
transforma como o sal numa panela de água quente. Não desaparece. Entrelaça-se
apenas, deixando as suas marcas nos corpos gastos pelos prazeres úteis ou
efémeros desta única vida.
Queria por certo algo mais carnal, mas tenho receio que
deixes de estar comigo como estás.
Vou para casa! Rogo, no entanto, à pequena estrelinha, que
sem perceber nasceu dentro de mim, que vença a minha sombra responsável, fria e
material, porque se vencer, crescerá um pouco mais e sem ninguém desconfiar
começo a ter dois sóis, para nos dias como hoje olhar para dentro e sentir a
força e a energia que eleva a minha temperatura.
É giro ver-te monopolizar-me desta forma. É como ver um
palhaço de rua a lançar bolas de cores garridas. Eu sou as bolas e tu o
palhaço. Eu não te vejo, porque as bolas não têm olhos, mas sinto quando me
agarras na tua mão por meio segundo, me acaricias e jogas novamente ao ar, para
ser admirado por todos como fruto da tua arte.
Estou dividido. Dividido por aquele que quer escrever,
mandar-te isto e esperar a tua resposta e o outro, o responsável, frio e
material, que quer largar tudo e estudar para não fazer má figura.
Eles não sabem que ando assim, mas mesmo que soubessem não
iam entender.
Mostro duas realidades minhas como murchas flores de
despedida.
Vou-me apartando de ti, amenamente, sem saber se ao morrer passarás na
tela de deuses humanos que coleciono ao subsistir.
Eu, num dia triste, num bairro lastimoso, nas cercanias de
Londres, rogo esperançoso: indemniza-me por obséquio se és mulher.
Ouço cá dentro, por cima do temor da tua perda, uma voz
dizendo baixinho e com volúpia como se para ti falasse: Não vás! Funde-te
comigo!
Heleno Pinhal 16 de Outubro de 2002
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