quinta-feira, 27 de setembro de 2018

IX. A morte chamou-me em Lisboa - Covilhã Viperina

Era de prever tal desalento imutável. Os meus dedos tocaram num corpo e o seu frio confrontou-me com o ser quente que sempre teve dentro. E abanou-me.

A morte. A minha maior inimiga ainda que recentemente descoberta. Essa fêmea indesejável que a todos os homens possui, mas não me vai conquistar sem eu querer, impura, mal-amada, iníqua, mas também anciã, apaziguadora e pensada.

A morte chamou-me numa primavera chuvosa com o frio a suspender o rebentar composto de todas as flores agrestes. A fuga foi-se com o meu autorizar pragmático. Sem discussão interior lancei-me a este chamamento injusto com o pesar em pensar. Correram tantas águas novas nas minhas pontes interiores que reparei que algumas estão por completar, outras destruídas e algumas desunidas. Então eu ainda não cruzei com a impura, com a mal amada e não tomei café com a anciã desnaturada?

Ora vamos lá marcar mais encontros. Não como este, que é perda sentida, mas dos outros só para deleite. Vá lá sua iníqua apaziguadora, arranja tempo e procura argumentos bem justificados, porque aos que desprezo são sempre amassados com a retórica que me coube por direito natalício.

Não ma tiras injusta maldita e não digo isto a pensar na minha escrita. Então não será concreto este pensar humano. Não será de enaltecer encrespar tudo o que é baixo, tudo o que é vil e sebento para amar o que é belo. Não será correto largar as nossas águas sujas pela subjugação, pela arrogância e menosprezo nas pessoas que as merecem? Os rins não limpam o sangue dos nossos dissabores para nos manterem puros por dentro e não lançam esses excrementos de má vida nos locais mais podres? Eu limpo-me com as pessoas corretas. Desço ao mais baixo do que sou, com as faces decompostas, para poder elevar o sorriso dos humanos que me têm.

É amassando a morte com tudo o que me arrefece que liberto a vida que tanto me aquece.

Heleno Pinhal, 30 de Março de 2004,  Covilhã, Portugal

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