quinta-feira, 27 de setembro de 2018

XII. Carro morador - Covilhã Viperina

É com todo o prazer de quem vive na Covilhã que tento moderado lançar o meu desânimo a alguns incómodos que por vezes a Serra não protege.

É nesta cidade secular, em plena Beira Interior, que as pessoas já não emigram. Os esforços dos dirigentes políticos juntamente com os bons ventos do capitalismo europeu socorrem esta região enjaulada na beleza de uma Serra que não sei se tem mais de bonita ou de esquecida. Por vezes há enigmas instalados na falta de bom senso desta realidade, uma realidade dissuadida pela beleza de uma primavera florida que sem qualquer cortejar de morador encantado é aqui em Abril que se encontra a única primavera desta Europa quase unida.

Na cidade universitária existem os estudantes desenraizados das grandes cidades do litoral e os doutorados pela vida, doutorados pela opressão salazarista, com noites de ruas cheias de empregados fabris bem remunerados, doutorados pelo descambar de toda a cidade abandonada pelo alarido de um outro dia de Abril e doutorados também por este novo século onde a Covilhã finalmente avista uma nova era com jovens licenciados lançados na conquista da sua fama de outrora.

É nesta transição que me encontro, aqui colado a estas casas inclinadas com vistas amplas e relaxadas, e era também aqui que me encontrava nestas ruas estreitas e agora bem arranjadas nas sete vezes que fui multado, uma delas mesmo em frente à minha porta. O meu desdém não vem do acto ríspido de multar um carro morador vem sim de todos os dias a qualquer hora encarar com outros carros não moradores, somente por acaso, no mesmo local onde fui sancionado. Mas oh senhor polícia, eu não quero que cá venha de bloco em punho e má cara, a disfarçar o bom luso coração, mas nos dias em que acordo a disputar a teima da vida começo a duvidar se fiz bem ou fiz mal em pagar. É que não acordo sempre na mesma posição, como vocês que aí estão, umas vezes abro logo os olhos por cima da mandriice outras parece que acordei desarranjado e espio os meus pensamentos todos mal estacionados. E fico a pensar, impassível, na rua recheada de falta de ordem.

Em frente à minha porta não! Todos os dias lá se encontram carros imobilizados a gozar com a lei vigente. Não é meu intento que o senhor polícia aqui venha, de bloco em punho e má cara a disfarçar o bom luso coração, gostaria era de ver mais visão nas regras de uma cidade onde se constroem edifícios sem garagem para vinte famílias, depois contratam-se dois polícias que num dever descontrolado debaixo de uma placa “Covilhã está no centro” enervam as contas bancárias das famílias que lá vivem às vezes sem dinheiro para pagar a água que está tão cara por estas bandas, talvez pela falta de degelo nas alturas desta Serra. No mês passado desembolsei cento e oito euros pela água que não molha as minhas paredes. Uma outra borbulha que tive, ontem ao final da tarde, foram os cento e setenta e cinco euros pagos pelo serviço público que me é prestado nesta cidade que não conhecia antes do meu novo abrir universitário. Muito rapidamente para não maçar quem não se preocupa com empreendimentos de estudante: são setecentos euros, cento e quarenta contos em nove meses que tenho aulas, setenta e sete euros por mês para frequentar a Universidade da Beira Interior, quinze contos para os licenciados antigos. Todos os meses, antes de ir a um dos quatro hipermercados que aqui conheço, tiro esses setenta e sete euros para pagar o ensino público mais o dobro para o quarto que preciso mais outro tanto para os papéis que acumulo e um pouco mais para me entreter como manda a minha idade. Este mês cobraram-me cem euros de água e oitenta de luz porque recebi a visita de uma funcionária que acertou as contas para a nossa antiga empresa eléctrica. Estacionou fora de mão e em cima do passeio como manda a antiguidade da minha rua que reclama com as outras ruas novas onde também se estaciona fora de mão mas desta feita por desleixo do planeamento moderno.

Eu vou embora! Então não hei-de de ir para o litoral rico em riqueza, com propinas a metade, água a um quarto e cinemas com boas casas de música por perto. Eu vou embora porque lá não pago multas nem vivo atormentado com um povo que acolhe os jovens e uma administração que os repele. Desenvolver um projecto de vida aqui sem sítio para o estacionar? Andar de transportes públicos que só passam quando estou na esplanada?

Sou um fraco! Sou mesmo um fraco. Não há dúvida que me agarro demais aos locais, às pessoas e aos bichos e depois faço más figuras. Estou aqui porque me agrada, agrada-me os montes a todo o momento no horizonte, agrada-me as escadinhas que todos os dias desço, agrada-me os semblantes antigos que me olham com atenção e agrada-me também o receber de comerciante ao atender um estudante desagarrado. Estou aqui porque me deleito, deleito-me com o escorregar gelado numa colina em gargalhada, deleito-me com o sanatório ingratamente abandonado e também me deleito quando perco os sentidos debaixo de uma árvore serrana.

Heleno Pinhal, Sexta-feira, 30 de Abril de 2004, 15:49:55

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