segunda-feira, 26 de novembro de 2018

XVII. Sobre o rio do teu corpo


Foste sincera e isso sabe a mel vindo de uma mulher bonita. É bom saber que me sentes desse lado, que invades conscientemente a minha privacidade e ver, que eu, como um menino bobo, fecho-me na armadura da autoconfiança, mas raladinho para me dar por completo, mostrando-te todos os tesouros que guardei à medida que o sal foi caindo nesta panela que ferve sempre cá dentro.

Há coisas que devem ser mantidas em segredo, mesmo para nós próprios, de forma a manter a serenidade que nos torna capazes de parar, ao ver as folhas que caem num outono tardio, ou continuar, quando nos aborrecem com conversas fastidiosas ou olhares fingidos.
Saber sentir é complicado, mas gostar de alguém também o é.

Ontem, saí molhado pela falta de me encontrar. Falei a amigos estranhos, que pouco ou nada sabem de mim. Vêem-me alegre, a galrear ideias aparentemente desconexas e são atraídos pela pérola da franqueza que trago frequentemente ao pescoço. Conhecidos que de certo hoje já nada se lembram. No entanto, disse-lhes o que sentia, como se fossem o muro das lamentações. Como tenho pena desse muro não existir cá! Não para lamentos, mas para contar todos os segredos, que por medo das sombras negras dos outros guardamos cá dentro, apodrecendo e contaminando todo o nosso corpo e espírito, com o fel da frustração de não sermos sempre nós próprios.

Algo aparece.
Sobre o rio do teu corpo.
Sobre o rio do teu corpo.
Sobre o rio do teu corpo.

Vem. Vamos. Anda daí! Vem gravar em rocha de granito todo o auge emocional que é possível conter e perceber esta cascata de emoções que todos temos cá dentro.

Passamos uma hora frente a frente num café sem falar. Depois, vais embora sem proferir uma palavra. Compramos canetas e cadernos novos, para afastar qualquer vestígio do nosso passado, e vamos sentar-nos contemplativamente, com um olho esquerdo para nós e o destro para o outro, com todo o direito de examinar como se um de nós fosse extraterrestre. Vamos colar esse momento no papel e no fim, queimamos tudo ou então oferecemos ao outro, para que nenhum de nós pense, ainda que num momento, que é possível morrer, visitar o paraíso e voltar para este vale de lágrimas para uns e festim para poucos.

Nunca fiz nada igual! Sei que vou perder dias de vida, com esta desordem emocional, mas o que importa quando se percebe que o tempo só se transforma como o sal numa panela de água quente. Não desaparece. Entrelaça-se apenas, deixando as suas marcas nos corpos gastos pelos prazeres úteis ou efémeros desta única vida.

Queria por certo algo mais carnal, mas tenho receio que deixes de estar comigo como estás.

Vou para casa! Rogo, no entanto, à pequena estrelinha, que sem perceber nasceu dentro de mim, que vença a minha sombra responsável, fria e material, porque se vencer, crescerá um pouco mais e sem ninguém desconfiar começo a ter dois sóis, para nos dias como hoje olhar para dentro e sentir a força e a energia que eleva a minha temperatura.

É giro ver-te monopolizar-me desta forma. É como ver um palhaço de rua a lançar bolas de cores garridas. Eu sou as bolas e tu o palhaço. Eu não te vejo, porque as bolas não têm olhos, mas sinto quando me agarras na tua mão por meio segundo, me acaricias e jogas novamente ao ar, para ser admirado por todos como fruto da tua arte.

Estou dividido. Dividido por aquele que quer escrever, mandar-te isto e esperar a tua resposta e o outro, o responsável, frio e material, que quer largar tudo e estudar para não fazer má figura.
Eles não sabem que ando assim, mas mesmo que soubessem não iam entender.

Embrulhei-te numa crosta dentro de mim, juntamente com o castelo que deixei a meio. 

Mostro duas realidades minhas como murchas flores de despedida. 

Vou-me apartando de ti, amenamente, sem saber se ao morrer passarás na tela de deuses humanos que coleciono ao subsistir.

Eu, num dia triste, num bairro lastimoso, nas cercanias de Londres, rogo esperançoso: indemniza-me por obséquio se és mulher.

Ouço cá dentro, por cima do temor da tua perda, uma voz dizendo baixinho e com volúpia como se para ti falasse: Não vás! Funde-te comigo!

Heleno Pinhal 16 de Outubro de 2002



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