quinta-feira, 27 de setembro de 2018

I. É claro que não importa - Covilhã Viperina


 

I.      É claro que não importa


Vinte e uma horas e vinte minutos no relógio apressado por cima dos sinos caladinhos.

É claro que não importa que a velha multiforme, com as varizes emocionalmente a imitar tatuagens presumidas, tenha colocado na minha mão o troco de cinco euros em vez de dez e desconfie ainda das minhas sílabas lânguidas. 

Não importa que cem andorinhas não se cansem de chilrear fulgentemente e que a Noite, a mandato do Sol, sobrecarregue com os seus tributos todas as penitências deste funil vivente. 

E distraio-me tanto, neste discurso alegre de palavras errantes, que o tempo passa como um coelho assustado. As cores mudam cada vez que deslaço o pescoço e me enterro sem queixume neste poço textual. 

O que há para fazer, com as batidas ancestrais das vinte e uma e trinta, nesta cidade da Covilhã? Como se semeia o nosso gérmen desenvolto neste seco terreno?

Não queria aceitar apelos ortodoxos a demagogias nómadas, mas zumbiu-me uma lei proibitiva de não deixar qualquer cabeça inclinada sair à rua, sem o correcto tempero prévio. É que depois, ao passarem mal temperados, irritam as ventas dos transeuntes com pimenta nostálgica colocada com saudade das dábulas da sua antiga Índia.

Anoiteceu por completo. São vinte e uma e trinta e sete e já não sei se o céu se anila ou escurece. Nesta altura, deixo de ver a quietude das paredes, cadeiras, ancinhos, astrolábios, saboneteiras e também não uno os dedos porque senão colam. Só romanceio sozinho como uma maçaneta ilustre que ninguém faz rodar.

E o dia passou todinho sem eu sentir. Parecia um daqueles dias em que descobrimos uma fonte no seu manancial e metemos as mãos na corrente fresca da água lacrada. Já repararam como aquilo sai direitinho e se entrelaça ao embater na nossa carne? 

E o tempo lá vai, a comandar aquele correr contínuo, numa perfeição inexplicável. Não há borbulhas, não há pensamentos geométricos, nem rodas dentadas. Tudo funciona num maquinismo analógico que ninguém percebe. E quem empurra a água assim tão direitinha? Se é o Tempo, porque é que ele nunca tem uma cãibra nem se abate? E a carne? De quem é a carne que desvia essa água vil? A carne é a minha! A que segurou a caneta brejeira, depois as teclas desgastadas e agora oferece aqui um romance neste engenho literal, para os corações acordados aprenderem a reconhecer palavras maciças nos momentos de enfeites transparentes. 

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